terça-feira, fevereiro 21, 2006

O Retorno

Hoje durante a aula de Macroeconomia I enquanto fazia minhas notas de aula(leia-se "copiava a matéria no quadro") resolvi voltar a postar aqui, como forma de "passar a limpo" toda a matéria do meu caderno que, acredite, é bem vasta e abrangente. Deste modo, posso dizer que tornarei este blog uma pequena biblioteca sobre Economia.

Dividirei os posts por matérias e assuntos, para melhor compreensão e organização das coisas e, se possível, hospedarei algum material que possuir em meu computador.

No mais, espero que os visitantes deste blog, sejam eles quem forem, gostem do material que estarei disponibilizando por aqui.

A seguir, iniciaremos o estudo de: Microeconomia (Micro I)

quarta-feira, agosto 25, 2004

2) A Antiguidade

"Seção I

O PENSAMENTO ECONÔMICO DA GRÉCIA

§ 1.º - Os fatos econômicos

Do século XII ao VIII antes da nossa era, conheceu a Grécia, tão-somente, uma vida econômica doméstica. Mas, após essa época, chamada "homérica", no período clássico do século V e, mais ainda, na era helênica dos séculos IV e III a.C., observa-se o desenvolvimento de uma vida econômica propriamente dita, ou seja, de uma vida econômica de trocas.

Os estrangeiros e os libertos são, então, os agentes mais ativos dessa economia estimulada pelas imensas conquistas que abrem à Grécia ricos e novos mercados.

Aliás, o comércio e a navegação se impõem aos gregos:




  • a pobreza do solo, a exigüidade do território e o excesso de sua população tornam o comércio necessário;
  • o mar, com seus numerosos golfos e baías, estava a indicar aos gregos o largo caminho dos longínquos mercados.

Reunia, portanto, a Grécia antiga os principais elementos de um meio econômico. E o normal seria encontrar-se aí, dada a influência do meio ambiente sobre as idéias, um pensamento econômico igualmente florescente. Contudo tal não se deu.

Existem apenas, esparsas nos tratados de filosofia, algumas idéias econômicas fragmentárias. Não há obra de Economia Política nos moldes, por exemplo, dos tratados de mecânica ou geometria da época; se alguns autores tratam do problema econômico, fazem-no de maneira acidental.

Contrastando com a pujança e o brilho característico do pensamento grego em geral, quer em filosofia quer em ética e política, as idéias econômicas, enfezadas e incompletas, mal chegam a revestir uma forma precisa.

§ 2.º - As idéias econômicas

Essa ausência de um pensamento econõmico independente se explica pelo predomínio da filosofia. A filosofia imprime, então, uma orientação geral ao pensamento, e impede o estudo independente e profundo dos problemas econômicos pelas seguintes razões principais:

  • idéia de preponderância do geral sobre o particular;
  • idéia de igualdade;
  • idéias de desprezo da riqueza

1. A Grécia se divide em cidades independentes, sempre em guerra umas com as outras. A cidade constitui, portanto, a principal ocupação, à vista da permanente ameaça à sua liberdade.

O sacrifício do indivíduo à cidade é a regra. Os problemas de bem-estar individual se subordinam aos de segurança e prosperidade gerais.

2. outra idéia filosófica predominante e absorvente é a de igualdade.

Nesste país, onde os meios de existência são limitados, parece impossível que alguém possa enriquecer senão à custa das perdas de outrem. A exigüidade dos recursos naturais suscita problemas de ordem econômica que terão repercussão no pensamento filosófico.

De fato, a igualdade, em seu aspecto ético, domina todas as manifestações teóricas e práticas do espírito grego. E, com razão, pode-se falar da igualdade como o "eterno tormento da Grécia".

A preocupação igualitária preponderava também na esfera econômica. Nada mais evidente que a influência por ela exercida sobre a política demográfica da época. Todas as medidas tomadas nesse campo tendem a assegurar uma população alegre e estável, estática. Malthus irá também, mais de vinte séculos depois, procurar os meios de limitar e estabilizar o volume populacional. A finalidade do economista inglês era, todavia, econômica - manter certa proporção entre os meios de subsistência e a população - ao passo que a dos gregos era precipuamente de ordem ética.

O Estado ideal dos gregos deveria compor-se do determinado número de habitantes, a ser este mantido estável. São condições que parecem favoráveis à manutenção da boa ordem política. Platão fixa em 5040 o número de cidadãos gregos de uma cidade - seja uma população de 50000 habitantes, se acrescentarmos mulheres e escravos.

Encontra-se esta idéia de igualdade em todos os campos; as terras devem ser divididas em partes iguais. É imbuído desse espírito que decreta Phaléias, da Calcedônia, a obrigatoriedade de casamentos entre pobres e ricos.

A preocupação econômica é, pois, eclipsada pela filosófica. Platão, por exemplo, estuda a divisão do trabalho, chegando mesmo a considerar com muita sutileza a sua necessidade e suas vantagens. Indica, entretanto, não ser isto possível senão havendo uma população densa. Mas, ao invés de concluir pela necessidade de estimular o crescimento da população, prefere privar-se das vantagens de uma produção dividida a se sujeitar aos inconvenientes que, segundo ele, por certo adviriam de uma população numericamente importante.

3. A atitude filosófica conduz, enfim, ao desprezo da riqueza. Eis como o exprime Platão: "O ouro e a virtude são coo dois pesos colocados nos pratos de uma balança, de tal modo que um não pode subir sem que desça o outro."

A felicidade reside na virtude; a riqueza é um obstáculo à felicidade; logo, deve-se desistir de obtê-la.

A preocupação essencial do homem deve ser a vida da alma; vêm em seguida os cuidados com o corpo e, em último lugar, com a riqueza. "O homem é só alma - escreveu Xenofonte - ou nada é." "A vida verdadeira começa com a morte", afirma Platão. Esse desprezo pela matéria, das riquezas, constitui um emecilho para se dedicarem os homens livres às atividades econômicas.

O caráter político desta economia da "Cidade-Estado", na Grécia clássicam leva o cidadão a dar seu sangue à cidade durante a guerra e dedicar-lhe seu tempo durante a paz. Os negócios públicos reclamam-lhe a atenção, em primeiro lugar e acima de tudo; os negócios privados vêm em segundo plano. E de tal modo absorventes são os deveres do cidadão que pouco tempo lhes deixam para se dedicarem a atividades econômicas. A maior parte dessas é relegada aos escravos enquanto a comercial é privativa dos estrangeiros. A posse do ouro e da prata é também vetada ao cidadão grego; vedados igualmente os empréstimos a juros. A propriedade de cada cidadão se limita, no máximo, a quatro lotes de terra; e se por acaso, em virtude de uma herança, exceder esse limite, ao Estado caberá o excesso.

Por esses exemplos pode-se ver que o pensamento filosófico grego, dada a sua expressão social, igualitarista e desinteressada, tornou impossível a elaboração geral e sistemática do pensamento econômico. E particularmente em virtude desse desprezo pelos bens materiais teve o pensamento dos filósofos como conseqüência impedir o desenvolvimento da riqueza: nesse sentido é essencialmente antieconômico.

Todavia, da ausência de um pensamento econômico geral e sistemático, não devemos concluir faltassem de todo à Grécia antiga idéias econômicas. Nos principais tratados de filosofia se encontram esparsos os primeiros elementos das grandes doutrinas econômicas, ou seja, os germes das correntes individualista, socialista, intervencionista, cuja evolução acompanharemos, através dos tempos, até nossa era. Daí ser interessante indicar aqui os seus aspectos pricipais.

1. Distingue-se, em primeir lugar, uma corrende individualista. Surge como reação ao meio ambiente: caracteriza-a o fato de contrapor à razão de Estado a razão individual. Formula-se então, o problema do direito das pessoas em relação ao da cidade. As vantagens da produção servil são postas em dúvida; contesta-se o desprezo da riqueza e há uma primeira tentativa de reabilitação do trabalho.

Na realidade, trata-se de uma corrente cuja influência foi secundária. Compreende escritores da segunda ordem, dos séculos V e VI a.C., os sofistas Hípias, Protágoras e outros. Em virtude de combaterem as medidas intervencionistas e conceberem uma economia no plano cosmopolita, esses sofistas se aproximam, por assim dizer, dos economistas do século XVIII, fisiocratas e clássicos, que também se opunham - então com sucesso - ao intervencionismo generalizado na época.

2. Observa-se em segundo lugar, uma importante corrente socialista, cujo principal representante é Platão(427-347 a.C.).

Este socialismo assume aspectos diferentes nas duas grandes obras do autor: "República" e "Leis":

Na "República" expõe Platão um socialismo bem diferente do das "Leis" e descreve o Estado ideal. A idéia geral consiste na implantação de um Estado onde reine a justiça e no qual possa o cidadão consagrar o máximo de seu tempo aos estudos filosóficos e à atividade política. Com este objetivo em mira, a parte reservada à Economia deve limitar-se ao mínimo necessário.

Platão descreve minuciosamente o plano dessa sociedade desejável. Compõe-se de gerreiros, magistrados e trabalhadores manuais. Guerreiros e magistrados - os verdadeiros homens livres - são os senhores da cidade; e também seus servidores, pois direitos e deveres devem estar subordinados so princípio de igualdade. Esses homens livres estão sujeitos a um regime de comunismo absoluto: comunismo de mulheres, de filhos e de bens. O princípio do desprezo à riqueza encontra aqui sua aplicação: o comunismo de bens põe-no em evidência; o de pessoas assegura-lhe a continuidade. De fato, seria construir obra provisória suprimir-se a propriedade sem destruir a família: "seria destruir a árvore deixando-lhe a raiz".

O trabalhador manual é excluído dessa organização comunista: a propriedade privada lhe é concedida desdenhosamente. Comerciante e artesão só merecem o desprezo de Platão; em contraposição o abricultor é objeto de certa consideração.

Nas "Leis" expõe Platão um socialismo diferente e bem mais moderado. Não se trata aí de um projeto ideal e utópico, mas de um programa suscetível de realização imediata a fim de melhorar o Estado ateniense de sua época. A finalidade é a mesma, isto é, estabelecer mais justiça e organizar a sociedade de modo que possibilite os meios de moderar o homem os seus desejos materiais e, assim, ficar livre para dedicar-se aos cuidados do espírito. Trata-se ainda de colocar o Estado em primeiro plano, garantindo-lhe o poder econômico através da solidariedade dos indivíduos. Daí resulta um regime autoritário, regime de transição, a fim de preparar o sistema ideal do futuro.

Os meios preconizados são, contudo, diferentes. O problema já não é o comunismo, e, sim, mais modestamente, o "apropriacionismo" ou participacionismo(partagistem). O programa se refere, particularmente, às vantagens resultantes da partilha das terras em pequenos lotes iguais: cada homem se tornaria proprietário de um deles, a título privado.

Justo é reconhecer que, na "República", de Platão, se encontram expressas, de modo geral, as primeiras tendências da corrente socialista, cuja evolução, até atingir suas formas atuais, jamais sofreu, através dos séculos, solução de continuidade.

Aliás, é necessário frisar, desde já, que o socialismo concebido por Platão na sua "República" - socialismo idealista e aristocrático - se diferencia de maneira profunda das formas modernas revestidas por essa doutrina.

O comunismo de Platão é uma doutrina de renúncia: busca uma fórmula intermedíária de limitar as aspirações, enquanto o socialismo contemporâneo procura soluções que permitam alcançar o máximo de satisfação. O comunismo de Platão concebe a transformação da sociedade segundo uma concepção da moral e não em função de uma necessidade história; este o ponto de vista "utópico" para a doutrina marxista e que, por conseguinte, os separa.

O comunismo de Platão é reservado às classes dirigentes superiores, ao escol da sociedade. Os beneficiários serão os guerreiros e os magistrados e não a classe trabalhadora. Não se trata de ditadura do proletariado, mas do domínio de uma elite. Eis aó outro traço que o distingue do socialismo atual.

3. Em terceiro lugar, encontra-se, no pensamento grego, uma corrente intervencionista, representada por diversos pensadores, dentre os quais Aristóteles(384-322 a.C.) é o mais importante.

Este, em sua "Política", faz severa crítica ao comunismo de Platão. Os argumentos aí desenvolvidos se tornaram clássicos.

Se o comunismo fosse o regime melhor - diz ele - há muito ter-se-ia realizado. Insiste na oposição existente entre o comunismo, de um lado, e a propriedade e a família, de outro. E tão arraigadas estão estas duas últimas instituições na psicologia humana que impossível parece extirpá-las.

Adversário de Platão, no que concerne à organização comunista da sociedade, Aristóteles dele se aproxima pelo desprezo que vota à liberdade individual e à propriedade privada.

É, também, partidário da supremacia do Estado e, de certo modo, do igualitarismo. Na sua teoria sobre a população, recomenda medidas intervencionistas severas de limitação da reprodução, a fim de manter a estabilidade demográfica. Nesse, como em muitos outros campos, dá ao Estado preponderâncio sobre o indivíduo.

As medidas preconizadas por aristóteles são menos absolutas que as de Platão; seu intervencionismo é mais realista que o comunismo deste.

Na Grécia antiga se encontra, pois, o germe das três grandes correntes: individualista. socialista e intervencionista.

A doutrina individualista, que não é propriamente uma doutrina, mas um conjunto compreendendo aspectos muito diversos e interessantes de idéias liberais aplicadas à Economia; em contraposição à primeira, a doutrina comunista de Platão, que reage energicamente contra o espírito capitalista do liberalismo e do individualismo econômico, na medida em que este espírito contraria a filosofia da justiça; finalmente, a doutrina intervencionista, sob a forma de intervencionismo do Estado, Eis aí onde termina a evolução de Platão nas suas "Leis". Eis aí também o essencial do pensamento econômico de Aristóteles.

Por mais interessante que seja, esse pensamento doutrinário fornece somente elementos fragmentários e incompletos para a formação do pensamento econômico que se beneficiará - sempre a propósito de problemas filosóficos ligados à vida política - de idéias interessantes sobre questões econômicas e, sobretudo, a respeito de questões monetárias.

§ 3.º - Os fatos e as idéias monetárias

1. OS FATOS MONETÁRIOS

Em geral concorda-se em fixar o aparecimento, na Grécia, da moeda metálica "cunhada" entre os séculos VIII e VII a.C.

É a época em que, sob a influência da expansão geográfica, e Economia grega se volta para o mar. É a extraordinária epopéia da colonização, levada a efeito de norte a sul pelo gregos da Ásia e no Ocidente pelos gregos do Continente. Esta colonização representa, na Antiguidade, uma revolução econômica cujo objetivo é em primeiro lugar comercial - encontrar produtos e mercados - e, em segundo, agrícola - adquirir terras.

A moeda é o instrumento necessário a essa expansão econômica.

Não se trata de um aparecimento "ex-nihilo", mas do resultado de longa evolução econômica. Já existia de há muito a moeda-mercadoria. A época homérica conheceu, entre outras, o gado como moeda corrente. Na sua "Política", relata Aristóteles como, pouco a pouco, a intensificação das trocas concorreu para a intervenção da moeda propriamente dita.

Havia uma grande variedade de moedas gregas:

  • variedade, primeiro, em relação ao metal de que era constituída. Roscher diz ter servido o ferro como matéria-prima das primeiras moedas, depois, os metais preciosos - ouro e prata - simultaneamente com o chumbo, o cobre e o bronze, foram utilizados para esse fim;
  • variedade, também, em relação à aparência: embora a unidade monetária fosse a dracna, as peças de moeda traziam os mais diferentes cunhos. O conhecimento desses cunhos é muitas vezes de grande utilidade para a compreensão dos textos da época. Reproduziam muitos deles a figura de uma coruja: O Professor Gonard refere-se a uma passagem dos "Oiseaux", de Aristófanes, na qual este fala de "corujas que fizeram seus ninhos nos bolsos". Trazem ainda a figura de outros animais e, muitas vezes, efígies;
  • variedade, enfim, no que se refere ao valor das peças. O Estado grego submete a moeda a constantes alterações. E a falsificação privada da moeda, mais freqüente ainda do que a pública, irá multiplicar essas alterações.

2. IDÉIAS MONETÁRIAS

Tal variedade monetária, bem como as trocas existentes entre as cidades gregas e entre estas e o estrangeiro, consituíam fatos que permitiram aos contemporâneos certo número de observações sobre a matéria. Donde serem as obras escritas, na época, sobre a moeda, mais numerosas e interessantes do que as referentes a outros problemas econômicos.

Aliás, conforme se pode verificar pela história das doutrinas, as idéias monetárias são, muitas vezes, mais adiantadas que as demais idéias econômicas. Isso parece estar a indicar, no que concerne à moeda, ser muito nítida a influência da arte sobre a ciência.

Aristóteles, na sua "Política", faz o histórico da moeda e mostrar ter tido a sua invenção por fim obviar as dificuldades da troca direta. A troca por meio de moeda, operação abstrata, suprime os inconvenientes da permuta ou troca direta, ato concreto.

Tomando, assim, por base na aparição da moeda, estabeleceu Aristóteles sua fundamental distinção entre as duas economias sucessivas:

  • a crematística natural, economia doméstica, a qual julga boa e necessária;
  • e a crematística não natural, economia mercantil, censurável por levar o homem a auferir da troca um provendo, o que é contrário à "natureza".

Ora, a crematística não natural, de Aristóteles, consiste na troca por intermédio de moeda, ou seja, na troca tendo em vista não apenas as necessidades pessoais, mas também a revenda. E no livro I, cap. IV, § 2.º, da "Política", examina Aristóteles, para condená-los, os três processos dessa crematística não natural, a saber: o lucro comercial, o lucro usuário(o juro) e o lucro industrial.

Essas idéias de Aristóteles, baseadas na aparição da moeda na vida econômica, profunda e durável influência exerceram sobre as doutrinas econômicas da Idade Média e outras doutrinas mais recentes:

  • os fisiocratas, no século XVIII, delas se servirão para distinguir o comércio de tráfico;
  • Carey as retomará no século XIX, conferindo-lhes uma posição fundamental em suas teorias;
  • Karl Marx usará a distinção aristotélica e, na sua "Crítica da Economia Política", de 1859, examinará separadamente a "economia simples e a economia capitalista"; e tal distinção ocupará lugar de destaque em sua obra;
  • modernamente, no século XX. falará Charles Bodin, acompanhando a distinção aristotélica, em "economia simples" e "economia derivada".

Há ainda, em Aristóteles, uma observação bastante precisa relativamente às diversas funções da moeda: indica servir esta, a um tempo, de intermediária das trocas, de instrumento de comparação de valores e de reserva de valor. Essa enumeração será posteriormente mantida: Galliani, Hutcheson e Adam Smith retomá-la-ão no século XVIII. Conserva ainda hoje a mesma importância, não podendo, pois, ser omitida.

Mas, tanto Aristóteles, como os socráticos, focalizaram também uma segunda questão monetária do mais alto interesse doutrinário: depende o valor da moeda do metal precioso que a constitui ou provém ele da autoridade que a põe em circulação?

Parece haverem os socráticos, conscientemente ou não, examinado o que de essencial existe nas teorias monetárias metalista e nominalista.

Xenofonte, na "Economia" e no "Tratado dos Rendimentos", vê no metal precioso, de que é feita a moeda, a essência do seu valor. Essa idéia metalista persistirá: vamos encontrá-la de novo principalmente em "Les considérations sur la monnaie"(1777), de Daguessau. Turgot, nas suas "Refléxions sur la formation et la distribution des rechesses", assim se exprimirá: "Ouro e prata são duas mercadorias como quaisquer outras". Os marxistas far-se-ão adeptos de tal maneira de ver para justificar a teoria do valor-trabalho.

Platão, em contraposição, dá ênfase ao aspecto nominal do valor da moeda. Nas "Leis" insiste na moeda-sinal. Seria, contudo, exagero crer que na concepção de Platão se filia, de modo refletido e cientfico, a uma tese nominalista. Razões outras há que podem explicar sua preferência:

  • vivendo numa época em que a onipotência do Estado é um dogma incontestado, só isso bastaria para justificar estatismo monetário;
  • mas, além disso, passou a Grécia, no século V, por rápidas transformações econômicas. O brusco desenvolvimento da riqueza mobiliária é acompanhado de um desequilíbrio social que atemoriza os filósofos. Segundo alguns, caberia à moeda a responsabilidade dessas transformações. O metal precioso parece ser o agente corruptor; o remédio deve, portanto, estar naturalmente na moeda-sinal, simples símbolo. Isso leva Platão a olhar a "Idade de Ouro" como a feliz era do banimento do ouro nas trocas. Todavia, dada a impossibilidade de conceber o seu experimentado espírito, a supressão do metal nos pagamentos ao exterior prevê um duplo sistema monetário: utilização da moeda fiduciária, para uso interno, e conservação da plena vigência da moeda-metal-precioso, para o uso externo.

Vê-se, pois, ter sido Platão partidário, como as reservas acima indicadas, de uma teoria monetária nominalista.

Estas idéias serão retomadas pelos adeptos da teoria regalista medieval e constituirão a teoria mais geralmente em voga, mesmo em nossos dias, servindo de justificação às inúmeras mutações, inflações e desvalorizações por que tem a moeda passado no decurso dos séculos.

Essas mesmas idéias são na atualidade retomadas e levadas ao extremo por F. Knapp.

Aristóteles, na sua "Política" e na "Ética do Nicômaco", não se define claramente, oscilando entre uma e outra dessas concepções. Alguns, como Roscher, por exemplo, julgam-no partidário do valor nominal da moeda. A posição de Aristóteles seria, entretanto, menos nítida que a de Platão, pois, em certas passagens de suas obras, acentua também o fato de haverem os homens escolhido a moeda dentre as coisas para eles dotadas de certo valor. A esse valor intrínseco do metal precioso acrescenta o costume, senão a lei, outro elemento de valor.

É possível admitir haver Aristóteles observado essas duas espécies de valor que se superpõem na moeda, constituindo, assim, as suas idéias uma síntese das duas opiniões contrárias, de Xenofonte e de Platão.

Sem insistir muito nesta questão, que suscitou inúmeras discussões doutrinárias, observaremos haverem exercido as idéias de Aristóteles grande influência tanto pela parte de verdade que encerram quanto pelos seus erros, pois desempenham estes, muitas vezes, um papel, útil, conforme tivemos oportunidade de dizer.

Além dos socráticos, inúmeros autores gregos fizeram também observações muito exatas relativamente aos fenômenos monetários. Aristófanes, entre outros, em uma das suas comédias, "As Rãs", pôs habilmente em evidência o fato de preferirem os habitantes de Atenas, segundo parecia, as peças monetárias más e boas. Indicou, assim, os efeitos de uma lei econômica, formulada no século XIV por Nicole Orèsme, à qual, no século XIV, ligará o seu nome o grande financista inglês, Sir Thomas Gresham.

Em resumo, as idéias monetárias dos gregos se apresentam sob forma muito mais desenvolvida e preciosa que as idéias econômicas propriamente ditas.

Entretanto, os juízos emitidos a respeito da moeda não escapam à influência filosófica da época: a filosofia leva os espíritos, mesmo de quantos, com mais argúcia, percebem o papel da moeda, ao desprezo dos metais preciosos, e isso por ser conveniente, de um lado, procurar reduzir as trocas e, de outro, suprimir no homem o gosto do luxo, que a posse dos metais preciosos jamais deixou de acarretar.

O pensamento grego, econômico e monetário permanece, assim, subordinado ao filosófico.

Seção II

A EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO ECONÔMICO ENTRE OS ROMANOS

O pensamento econômico romano está subordinado não mais à filosofia, mas à política.

Encontraremos de novo, na Roma antiga, o paradoxo da ausência de um pensamento econômico geral e independente, a despeito da existência de uma vida econômica.

§ 1.º - Os fatos econômicos

O meio econômico é mais intenso que na Grécia.

Trata-se de um enorme império cuja unidade econômica tem por sólidos alicerces as admiráveis vias de comunicações: a Itália é cortada, em todos os sentidos, por estradas em excelentes condições e, no período imperial, essa rede rodoviária se estende por todas as províncias, expandindo-se ao redor dos grandes centros.

O estabelecimento da Pax Romana foi um dos fatores mais favoráveis à expansão das trocas: a navegação do Mediterrâneo é, no decurso desse período, próspera e segura. Roma torna-se grande mercado para onde afluem os produtos de todas as províncias. As transações são particularmente ativas, assistindo-se, então, à criação de poderosas companhias mercantis e sociedades or ações.

Mas essa atividade econômica não gera qualquer pensamento doutrinario interessante.

Enquanto, entre os gregos, a explicação deste fenômeno estava na filosofia do desprezo à riqueza, vamos encontrá-la, entre os romanos, no espírito político preponderante em todas as suas atividades.

A missão histórica da Roma antiga foi militar e política. Aí reinou imperativamente o espírito de dominação. A riqueza constituía apenas um meio de assegurar esse domínio, nunca uma promessa de bem-estar.

As grandiosas realizações da época - quer se tratasse de estradas, de aquedutos, enfim, de magníficos trabalhos de arte, de qualquer espécie - tinham sempre em vista o fim político, nunca o econômico: necessário era garantir, de forma rápida e segura, o transporte e o abastecimento das tropas; exercer, até aos pontos mais afastados do Império, vigilância e fiscalização.

O romano é consumidor, mas não quer ser produtor. Sem dúvida era próspera, a princípio, a agricultura romana; mas logo os lavradores indígenas, pequenos proprietários de suas terras, foram sendo substituídos por escravos, enquanto a pequena propriedade, de cultura intensiva, cedia o passo ao latifúndio, de cultura extensiva. Dentro em pouco passaram as artes e os ofícios industriais e o comércio a ser considerados atividades indignas de um homem livre: Roma faz com que as províncias, conquistadas e escravizadas, produzam e abasteçam-na do necessário ao seu consumo.

O pensamento romano concentra-se, pois, inteiramente no fato político. E além disso, se levarmos em conta a carência de originalidade especulativa de que padecem os romanos - suas idéias foram, de maneira geral, tomadas de empréstimo aos gregos -, compreender-se-á por que, a despeito de existir uma ativa economia de troca, nota-se, neste campo, a ausência de pesquisas teóricas sérias.

§ 2.º - As idéias econômicas

Nas obras dos teóricos romanos pode-se, contudo, perceber traçoes de duas tendências doutrinárias opostas: intervencionista, uma; individualista, a outra. A primeira exerceu acentuada influência sobre os acontecimentos econômicos da época; a segunda desempenhou um importante papel, mediato e indireto. sobre a evolução da história das doutrinas.

1. A TENDÊNCIA INTERVENCIONISTA

Esta tendência prepondera na antiguidade romana e se manifesta de modo característico na política chamada anonária.

A intervenção do Estado é provocada por dificuldades de abastecimento, que se tornaram agudas no ano 495 e, sobretudo, em 440; a lentidão dos transportes e um estado de guerra bastante prolongado são suas causas principais.

O Estado açambarca, então, o mercado dos cereais. Leis famosas organizaram essa intervenção que, de século para século, se torna mais estrita; Citemos, à guisa de exemplo:

  • a lei Semprônia, de 123 a.C., encarregando o Estado da distribuição de cereais abaixo do preço de mercado;
  • a lei Clódia, do ano 58a.C., reservando o benefício de tal distribuição aos indigentes;
  • uma lei Aureliana, do ano 270 da nossa era, determinando que fosse feita a distribuição do pão diretamente pelo Estado.

Bem conhecidas são as desastrosas conseqüências dessa ampla intervenção:

  • do ponto de vista das finanças públicas, concorreu para aumentar o déficit orçamentário;
  • do ponto de vista social, encorajou a plebe à indolência e serviu de incentivo a inúmeras fraudes;
  • do ponto de vista econômico, constituiu uma das causas mais prováveis da decadência da agricultura itálica e, sobretudo, acarretou a regulamentação total da economia romana.

Com efeito, a fim de assegurar o funcionamento dessa política anonária, foi o Estado obrigado a regulamentar a produção agrícola e a troca de produtos.

os regulamentos pulularam; nas regiões produtoras de cereais, como a Sicília, por exemplo, legislou o governo no sentido de impedir que vendessem os lavradores suas colheitas a outrem que não os compradores oficiais de Roma; a semeadura era controlada, a colheita fiscalizada e monopolizados os transportes. Sistema semelhante se encontrará de novo nos séculos XVI e XVII, na era mercantilista, sob o nome de pacto colonial. E, a partir do segundo terço do século XX, vamos observar a adoção de complicada política de regulamentação, não muito diferente do sistema anonário em alguns de seus aspectos.

Contra este abuso de regulamentação não se encontra, então, uma oposição doutrinária deliberada e firme. Mas, ante a decadência em que caíram, a um tempo, a agricultura, o povoamento do solo e os costumes, numerosos autores fizeram ouvir a sua voz de protesto. Exprimiu-se este, na maioria das vezes, sob a forma bucólica de hino, celebrando, no retorno à terra, o meio de se encontrar, de novo, a prosperidade material e o equipamento moral. Esses autores são agrupados sob a denominação geral de "scriptores de re rustica", incluindo-se entre eles particularmente: Catão("De re rustica"), Varrão("De agricultura"), Virgílo"principalmente as "Geórgicas") e Columella("De agricultura").

Esses escritores legaram-nos verdadeiros tratados agrícolas muitas vezes poéticos, sempre práticos, mas quase que inteiramente desprovidos de qualquer observação de ordem econômica propriamente dita.

Essas diferentes obras traduzem, sobretudo, a necessidade de retornar à terra, a qual tanto mais premente se torna quanto é fato se agravar a situação material e social. Poder-se-ia comparar esse estado de espírito ao que animará os fisiocratas franceses no século XVIII.

2. A TENDÊNCIA INDIVIDUALISTA

Esta tendência é representada pelos jurisconsultos romanos. Em seus notáveis trabalhos, que souberam desafiar os séculos, assentaram as sólidas bases do direito de propriedade privada e instituíram a sistemática do direito das obrigações.

Esses jurisconsultos, dotados de acurado senso econômico, lançaram, assim, os fundamentos essenciais do individualismo.

Sua influência doutrinária não se fará sentir imediatamente na economia política; será necessário que os sábios da renascença descubram os seus trabalhos para que, no século XVIII, e somente então, apoiando-se nessas bases romanas, se desenvolva o liberalismo através das escolas fisiocrática e clássica.

E, necessário fosse sistematizar a contribuição doutrinária da época romana à nossa disciplina, por certo dar-se-ia a preeminência à obra desses jurisconsultos, da mesma forma que a mereceu, na Grécia antiga, a concepção estatal de Platão.

Essas duas correntes antagônicas, emergidas do pensamento antigo, jamais deixarão de - ora uma, ora outra - fazer sentir a sua influência na evolução das doutrinas econômicas."


1) Introdução: Interese da História das Doutrinas Econômicas

"Estes parágrafos representam uma súmula da evolução das doutrinas econômicas, da Antiguidade aos nossos dias.

Uma doutrina econômica constitui, a um só tempo, um projeto de organização econômica de dada sociedade e uma interpretação da atividade econômica de dada época.

Esclarecemos, desde já, a distinção entre a doutrina e a ciência. A ciência visa à explicação dos fenômenos econômicos. Para isso, observa, analisa, levanta hipóteses e as verifica em confronto com os fatos. São operações desenvolvidas num ambiente de objetividade, de "indiferença", de neutralidade e amoralidade científicas.

A doutrina é um projeto de organização da sociedade, tal como seu autor a julga melhor. Ela contém os elementos da política econômica escolhida para realizar a organização desejada.

O autor fixa "a priori" o fim que espera atingir e, para elaborar a doutrina que lhe ajusta, vai buscar seus argumentos nas mais variadas fontes da filosofia, da sociologia, da história, da política, da religião, da geografia e da economia. Numa doutrina, encontram-se idéias morais, posições filosóficas e políticas e atitudes psicológias, bem como, ainda, subjacentes interesses individuais, interesses de classes ou de nações.

A doutrina é, pois, pela sua natureza, uma síntese de idéias pertinentes aos mais diversos domínios. Por isso a organização e a interpretação econômica oferecida por ela acham-se ligadas a numerosas disciplinas, cada uma a trazer sua "éclairage" própria. Forjadas sob "la dure école des siècles", as doutrinas estão pejadas de idéias e sentimentos. São gritos de dor e esperança. São, sobretudo, mensagens que os "homens de boa vontade" transmitem, de geração a geração, nessa luta incessante contra a natureza avara e o egoísmo dos seus semelhantes; mensagens que permanecem nessa "alma" que cada civilização lega à elaboração do progresso da humanidade.

Que interesse apresenta o estudo das doutrinas econômicas assim compreendidas?

O primeiro interesse de seu estudo reside em completar a cultura geral. Nesse aspecto, as doutrinas econômicas constituem precioso e indispensável elemento reconstitutivo e representativo de uma época. Um exemplo: a segunda metade do século XVIII, fértil em acontecimentos políticos, não poderia ser interpretada com exatidão, sem o auxílio da doutrina fisiocrática. Nesta estão refletidas as grandes idéias dominantes, agrupadas desde o início do século nessa exaltação magnífica de liberdade, que somente pode ser bem compreendida como reação aos três séculos de intervencionismo mercantilista. Encontramos na fisiocracia a reação liberal, acompanhada de seus caracteres racional(criação da ciência econômica), otimista(laissez-faire, laissez-passer) e individualista(harmonia de interesses). Transportada para o plano econômico-doutrinário, constituiu a grande esperança da época, marcou e deu sentido aos acontecimentos decisivos desse fim de século e de regime, força atuante que se prolongará, exprimindo-se mais vivamente na política do liberalismo econômico do século XIX. E aquilo que é verdade para a compreensão de uma época também o é para entender algumas dessas grandes obras que ilustram civilizações. O conhecimento das idéias econômicas de um Aristóteles ou de um Platão, na Antiguidade, de certos teólogos da Idade Média e, mais próximos de nós, de um David Hume, de um Adam Smith ou de um Stuart Mill é indispensável para a perfeita compreensão de suas filosofias.

A História das Doutrinas Econômicas serve, outrossim, de complemento à cultura econômica. Para o economista, o estudo da História das Doutrinas Econômicas apresenta interesse determinado por várias razões: a doutrina, com efeito, influencia a organização e a evolução das sociedades; seu conhecimento permite interpretar essa organização e a evolução das sociedades; a doutrina atua sobre a elaboração da ciência econômica, estimulando-a e facilitando-a; enfim, o conhecimento das doutrinas contribui para a formação e o desenvolvimento do espírito crítico.

A doutrina - como dissemos acima - atua sobre a organização e a evolução das sociedades: a história não se faz sozinha; resulta também de idéias dominantes. Do fim do século XV aos meados do século XVIII, por exemplo, o mundo ocidental - inclusive as colônias americanas - foi organizado em função do princípio metalista da doutrina mercantilista. Atualmente, as nações socialistas coletivistas organizam-se em função das idéias das doutrinas de Karl Marx. Há aí evidente influência das idéias sobre os fatos apenas lembrada neste momento. Mas encontrá-la-emos noutros passos deste estudo.

Além de atuar sobre a criação e a evolução das sociedades, a doutrina interessa-nos como fator explicativo, isto é, meio para explicar a organização e as transformações de uma sociedade. Seria impossível interpretar os três séculos do mercantilismo, conhecer e compreender as razões da organização econômica dos Estados, as políticas nacionais e a evolução econômica dessa época, sem o exato conhecimento da doutrina que o suscitou e o interpretou. Hoje, por igual, a economia soviética e das outras nações comunistas escaparia a qualquer interpretação de conjunto à forma, quanto ao funcionamento e quanto às transformações, sem o conhecimento da doutrina que presidiu a sua criação e preside sua evolução.

A doutrina permite ligar os elementos diversos da atividade econômica e social de uma época: possibilita a visão e a compreensão da unidade da vida social e a íntima dependência de seus elementos. Ela é um dos fios condutores que permitem a distinção das ligações necessárias entre a multiplicidade das contingências, pondo em relevo o verdadeiro sentido da evolução que não raramente nos escapa, na diversidade dos curtos períodos de adaptação. Assim, ela nos leva a ver, com maior clareza, as experiências do passado e do presente.

É também de nossa imensa utilidade para o pesquisador que, no plano da ciência, se esforça para apresentar as continuidades, as regularidades e as permanências. Nesse sentido a doutrina facilita o estudo da teoria e a elaboração da ciência, estabelecendo um nexo entre os fatos isolados - tão numerosos no campo da economia - e os princípios que os informam, pondo em foco o principal e escoimando o secundário. Por isso ela representa instrumento de síntese e, conseqüentemente, fator de clareza. Tal é a contínua e benéfica ação exercida pela doutrina sobre a ciência. A história das doutrinas torna-se indispensável à formação dos economistas porque é fator de clareza e de reflexão, do mesmo passo que introdução e síntese indispensáveis ao estudo econômico. Economista desconhecedor das evoluções das doutrinas econômicas não passa de especialista sem cultura.

Haverá necessidade de falar da ação da ciência sobre a doutrina, a qual tem por fim consolidá-la e depurá-la? Efetivamente uma doutrina deve embasar parte de seus argumentos em princípios da teoria econômica quando, para mais não seja, explicar e justificar o funcionamento da organização prevista. A solidez desses princípios garante a estabilidade do edifício doutrinal¹. A doutrina de Karl Marx, por exemplo, foi estabelecida com base nos princípios teóricos da ciência clássica inglesa. Ora, quando certos aspectos dessa ciência clássica se modificaram pelas novas tendências econômicas, os continuadores de Marx incorporaram esses novos dados mais exatos à doutrina, para maior solidez esta. Foi o que, em particular, se fez na adaptação da teoria marxista da "mais valia" à contribuição das escolas hedonistas do último quartel do século XIX.

O estudo da doutrina, ademais, é útil à interpretação dos fatos; contribuindo para salientar a verdade, permite desenvolver o sentido do relativo e o espírito crítico. Esta é, aliás, uma das razões principais do valor da formação pelas doutrinas, pois obriga o economista, que muitas vezes caciocina com abstração ou em função dos problemas de seu tempo, a tomar contato com a variedade dos sistemas, a se compenetrar do sentido da contínua evolução e dos sucessivos e reais encadeamentos, a considerar a multiplicidade das causas das ações humanas e a observar como são vãs as experiências que se dizem definitivas. E nesse sentido crítico ele se torna cada vez mais indispensável ao homem moderno, circundado de inúmeros fatos sociais e econômicos de difícil interpretação. Sempre houve dificuldade para interpretar fatos. Isto é devido à circunstância de o homem estar constantemente mudando de idéias, o que leva a encarar os mesmos fatos de maneira diferente, segundo o momento.

Constumava o Professor Colson citar a esse respeito, em suas aulas, o seguinte exemplo: Benjamin Constant gastou quarenta anos em preparar, fazer e retocar alentada obra referente a religiçoes. Coligara dez mil fatos nos quais fundou seu exaustivo trabalho crítico a propósito das idéias religiosas. Posteriormente, vindo a sofrer a ação de novas influências, evoluiu e modificou por completo sua obra, alterando-lhe o espírito, embora servindo-se, nela, ainda dos mesmos fatos. "Eles deram meia-volta, à voz de comando - dizia o próprio Benjamin -, e atacam, desta vez, em sentido oposto." Jean Brunhes traduzia desta maneira, idêntica idéia: "É por um estranho abuso de palavras que falamos da veracidade de um fato. Um fato possui dimensão, cor, duração, mas não uma verdade: verdadeira ou falsa será a percepção que dele temos, assim como mais justo ou menos justo pode ser o juízo que dele formamos. E só há notícia das relações que estabelecemos entre os fatos."

A interpretação dos fatos é também difícil, porquanto eles falam línguas diversas. nas vastíssimas experiências contemporâneas, por exemplo, cada Estado adota sua política em vista da consecução de certos fins, bem como justifica os fatos daí decorrentes.

O julgamento dos indivíduos torna-se cada vez menos pessoal. O Estado moderno, ao apresentar os acontecimentos através da imprensa e outros veículos de publicidade, já o fez de acordo com uma interpretação particular. Por esta razão, o mesmo fato muitas vezes enseja impressões diferentes e até opostas, conforme o lugar em que se dá. A ideologia transforma a realidade dos fatos. Além disto, o atual acúmulo de fatos dificulta-les ainda mais a interpretação. Poucas épocas contaram tão elevado número de experiências econômicas quanto a que atravessamos. Há já um quarto de século e sobretudo a partir do início da crise mundial de 1929, multiplicam-se ininterruptamente, em toda parte, os remédios para os males econômicos e monetários, quer sob forma isolada, quer como parte de "planos". Cada país, finda a Segunda Grande Guerra Mundial, reorganiza e, em escala ainda mais vasta, traça planos para o futuro de sua economia. Parece que estamos, agora, precisamente naquele momento da História em que, precipitando-se as mudanças em ritmo aceleradíssimo, melhor seria falar em revolu~ção do que em evolução. Os fatos se acumulam; enriquecem-se com as descobertas físicas fantásticas, que semeiam, a um só tempo, o temor pelas suas possibilidades destrutivas e a esperança por tudo que promete realizações pacíficas as mais extraordinárias.

O observador atento, esmagado pelas minúcias de fatos tão diversos, perde de vista a linha geral da sua evolução e do seu encadeamento, pois é impossível a apreensão do valor de cada um dos acontecimentos, em vista do seu excesso. Se não nos quisermos perder nesse labirinto e se pretendermos, ainda, estar em condições de formular juízo de valor, indispensável será ligar tais fatos à doutrina, de que constituem a aplicação, bem como aos princípios de que emanam. Para tentar compreender e julgar, faz-se mister, mais do que nunca, avocar as apreciações ministradas pela história dessas doutrinas gerais acerca de fatos a cujo peso sucumbimos.

Relacionando fatos a princípios, a história das doutrinas econômicas oferece outra utilidade: concorre para que saibamos que experiências, apresentadas como originais e modernoas, não passam, no mais das vezes, de aplicação de antigas doutrinas alteradas, aqui e ali, a sabor da moda em voga. Os exemplos são numerosos, como veremos ao longo destes parágrafos. O ressurgimento do mercantilismo e do corporativismo depois da guerra de 1914 constitui um fato característico. O recurso à história das doutrinas oferece, em suma, o interesse de evitar o ridículo de "descobertas já feitas"; de possibilitar a verificação do grau de originalidade da doutrina considerada, ou seja: o de divisar semelhanças e dissemelhanças entre ela e o seu ou seus modelos; o de permitir o máximo aproveitamento do esforço despendido pelos predecessores, evitando a reincidência nos mesmos erros de outrora. Graças a isto, o espírito é capaz de acolher, objetiva e imparcialmente, todas as novas experiências econômicas, sabendo que nenhuma delas é original, mas herdeira de desenvolvimentos múltiplos que a antecederam. Sabendo, por fim, que nenhuma pode ser definitiva, uma vez que foge ao poder do homem estancar a evolução.

Eis, rapidamente, aqui, examinado o interesse que suscita a história das doutrinas econômicas.

Salientamos, ainda, que a evolução do pensamento econômico deve ser submetida a estudo feito de maneira muito ampla. Por outras palavras: é necessário conhecer a doutrina havida como falsa no passado, tanto quanto a havida como verdadeira.

Houve autores que julgariam melhor se evitassem o estudo da idéia "falsa". Tal o pensamento de J. B. Say, em seu "Traité d' Économie Politique": Os erros não são aquilo que devemos aprender, mas aquilo que deveríamos esquecer." Assim também pensam Pantaleoni e muitos outros. Semelhante juízo se coaduna, entretanto, com as chamadas ciências "exatas". Realmente, ao moderno estudioso da física pode ser indiferente saber que, na Idade Média, a ascensão de um líquido num tubo era explicada pelo "horror ao vácuo".

Todavia, no campo das ciências sociais e econômicas, tanto as teorias falsas quanto as exatas exprimem igual interesse. "É essencial - observava Confilac, para aquele que deseja progredir sozinho na busca da verdade, compreender o engano dos que acreditaram abrir seu caminho."

Depois dos trabalhos de Bergson e particularmente de Henri Poincaré, ficou estabelecido, em definitivo, que os erros representam papel útil, nas ciências sociais sobretudo. Na doutrina econômica, o erro oferece utilidade: primeiro, porque toda doutrina econômica tem por objeto o homem e, de acordo com Spencer, em matéria de psicologia "não há erro que não contenha partícula de verdade"; segundo, porque é proveitoso conhecer o processo pelo qual o erro foi posto em evidência, a fim de aperfeiçoar o método de encontrar outros erros; terceiro, porque, ao colocarmos o erro em evidência, podemos chegar à descoberta de princípios que, embora extremamente simples, passaram antes desapercebidos.

A negligência de tais princípios conduz, não raro, à adoção de soluções não adequadas. É nesse sentido, por exemplo, que o exame das doutrinas socialistas, chamadas "utópicas", se torna útil. Muitos desses sistemas ignoraram ou puseram de lado qualquer consideração relativa ao interesse pessoal. Ora, o conhecimento dos impressionantes fracassos desses sistemas, ao contato da realidade, teve o mérito de chamar a atenção para verdades primárias e esquecidas. Não fosse essa advertência, alguns princípios fundamentais, havidos como verdades de somenos, acabariam sendo verdades ineficazes.

Em suma, a utilidade do estudo do erro, no campo ecoNõmico, decorre sobretudo da dificuldade de saber quando determinada doutrina é, de modo absoluto e definitivo, falsa ou exata.

Além da procedência da observação de Spencer, à qual nos referimos acima, há ainda a notar que a evolução das condições sociais e econômicas parece concorrer para a transformação de uma doutrina, de modo a torná-la, de absolutamente falsa que era ontem, em relativamente exata hoje, e vice-versa.

Impossível, pois, abandonar o estudo de certas doutrinas, apenas sob o pretexto de terem sido consideradas falsas no passado.

O conhecimento do papel desempenhado pelos erros, tão inútil à história das doutrinas econômicas, é também indispensável a quantos se interessam por essa matéria: constitui um constante apelo à modéstia e ao senso de relativismo, reforça o hábito de controlar as verdades "adquiridas" e de jamais abandonar a priori o que foi qualificado de "erro".

Acabamos de insistir na influência da doutrina sobre os fatos, sobre o meio, sobre a organização e evoluçãodas sociedades. Mas, não nos devemos esquecer de que o meio influi também de maneira igualmente profunda sobre a doutrina.

Alternativamente - como observamos no decorrer desta exposição - doutrinas e fatos são causas e efeitos recíprocos. Portanto, a história das doutrinas não pode ser separada da história econômica. Esta constitui seu próprio meio de evolução e ação, no qual se encontram os elementos indispensáveis à sua compreensão. O próprio objeto da história econômica não nos permite duvidar de sua utilidade relativamente ao estudo das doutrinas. Seu objetivo é o estudo dos aspectos econômicos das sociedades do passado. esses aspectos se manifestam essencialmente pela maneira segundo a qual os homens, através dos séculos, organizam seus esforços no sentido de utilizar da melhor maneira possível os bens e serviços econômicos na satisfação de suas necessidades.

Esses aspectos econômicos constituem essa luta, de atos tão diversos, que a humanidade sustenta progressivamente contra a raridade dos fatores de produção, raridade em relação às múltiplas necessidades a satisfazer. e essa luta se desenvolve em meio físico e demográfico e em quadro institucional, social e político. A arma à disposição do homem é a técnica da produção, técnica que aperfeiçoa incessantemente a fim de aumentar a produtividade de seu trabalho.

Os caracteres preponderantes da atividade econômica de uma sociedade, em dado momento, definem um sistema econômico. Definem o espírito, ou seja, os móveis determinantes da atividade econômica; definem a técnica, ou seja, os meios utilizados pelos homens para produzir; definem o quadro, isto é, a organização social, jurídica e institucional na qual se desenvolve a atividade econômica individual, grupal e pública. Notemos, porém, que as atividades grupais e públicas não são simplesmente a resultante das atividades individuais componentes: têm um caráter orgânico que ultrapassa e transforma os componentes individuais.

O espírito, a técnica e os quadros caracterizam e definem sistemas econômicos: sistemas de economia fechada, de economia artesanal, sistemas de economia capitalista e sistema de economia coletivista. A passagem de um sistema a outro se faz através de transformações dentro do sistema e no quadro mais geral das modificações das estruturas econômicas.

A organização dessa atividade econômica em dado momento da história, as transformações dessa atividade no tempo, as suas conseqüências sociais e políticas, eis o que constitui o objeto da história econômica.

É fácil agora ressaltar a utilidade da história econômica para o estudo das doutrinas, Ela lhe fornece o material de que necessita para reconstruir a atividade ecoNõmica de uma sociedade ou de determinada época, o que vai permitir o conhecimento, a análise e a explicação dessa atividade. Ao mesmo tempo que a história econômica dá assim uma visão de conjunto daquela atividade, mostra, pelo conhecimento das evoluções, o sentido profundo das instituições e dos instrumentos econômicos(regimes de propriedade, organização do trabalho, moeda etc.). Além disso é útil para a elaboração de uma escala de valores entre os próprios fatos, problemas importantes em razão da multiplicidade e complexidade desses fatos.

Insistiremos, portanto, cada vez que se tornar necessário, sobre os aspectos dessa história econômica.

Concluindo: a doutrina econômica é conhecimento indispensável à formação, à cultura e às pesquisas científicas do especialista, quer do economista, quer do historiador. É para todos um conhecimento necessário à exata interpretação do passado e do presente. A doutrina econômica, parte integrante do pensamento, das idéias e da intelectualidade de uma época, é elemento eficaz, sempre vivo, algumas vezes decisivo, da organização e da evolução das sociedades; situa-se na linha divisória dos problemas do espírito e dos fatos e, porque largamente assentada nesses dois domínios, permite perceber a síntese."



Notas de rodapé:

  1. É o que exprimem bem estas poucas linhas extraídas da oração fúnebre proferida por GEORGE RENARD ante o túmulo de LÉON WALRAS: "Trazer mais luz para fazer justiça; preparar, em nome da razão, do ideal, do absoluto, as soluções que os homens políticos, homens de ação, da realidade e do relativismo, podem e devem introduzir nos fatos e nas leis, em prol da paz das nações de da felicidade do gênero humano."

Resumo Geral:

Listarei aqui os textos a serem publicados neste blog de hoje em diante, até que todos eles sejam publicados.
  1. Introdução: Interesse da História das Doutrinas Econômicas
  2. A Antigüidade
  3. O Pensamento Econômico na Idade Média
  4. Mercantilismo e Cameralismo: A Expressão da Economia nos Séculos XVI e XVII
  5. Os Fisiocratas
  6. Adam Smith
  7. David Ricardo: Teoria da Renda da Terra e Conflito de Classes
  8. A Teoria do Comércio Internacional

Está aí a programação para a próxima semana, na disciplina de HPE. Divirtam-se pessoas! \o/

terça-feira, agosto 24, 2004

O Princípio do Fim

Será o fim dos tempos? Armageddon? O Apocalipse?

Não! O negócio é que eu resolvi tomar vergonha na cara mesmo e estudar! Preciso manter a matéria em dia e nada mais divertido e descontraído de fazê-lo do que fazer em um ambiente no qual eu já estou familiarizado, por isso resolvi montar um blog sobre isso.

Aqui estarei re-escrevendo os textos enormes que tenho de ler para estudar a disciplina de História do Pensamento Econômico(que aqui será referida como "HPE"), então, preparem-se para textos gigantes e complicados de entender, pois é só o que vai rolar por aqui!

Ah sim, deixarei espaço para comentários, assim podemos discutir sobre o assunto e similares. Divirtam-se e espero que, além de servir de estudo para mim, seja útil para os visitantes!

No momento, estou cansado pra caramba então deixarei para começar essa nova saga amanhã! Até mais, pessoal!